Izaias Resplandes
“Seja o seu ‘sim’, ‘sim’, e o seu ‘não’, ‘não’” (Mt 5:37)
O Brasil é um país de paradoxos. Além dos radicais contrastes físicos e culturais que encantam os turistas, também predominam em seu território os contrastes socioeconômicos/legais que envergonham os brasileiros perante a comunidade internacional, responsáveis em potencial pela escravização de quase um quarto da população, que não tem como sobreviver, senão à custa da exploração de sua dignidade e que, grosso modo, é aceito com a maior naturalidade por todos os segmentos sociais brasileiros.
“Que lindo! Que maravilha! Que espetáculo! Isso aqui é um paraíso! Brasil! Brasil! Brasil-sil-sil!” Essas são frases que adocicam os ouvidos dos guias turísticos brasileiros na Amazônia, nos Cerrados, no Pantanal Mato-grossense, na serra gaúcha, nos pampas, nas cataratas do Iguaçu, enfim, da Ponta do Seixas à Serra da Contamana, do monte Caburaí ao arroio Xuí que, na sua maioria, vivem do subemprego, não são têm CTPS assinada e nem são empregados de ninguém. São “autônomos” sem autonomia. Apesar de bonitas essas frases ditas pelos turistas, que cantam e encantam, elas também são retratos coloridos da realidade em preto e branco que é vivida pela maioria das gentes desse país. É de destacar que “na última pesquisa da empresa de consultoria A. T. Kearney e da revista Foreign Policy, com a avaliação de 62 países que representam 85% da população mundial, o Brasil caiu quatro postos no Índice de Globalização (IG). [...] O IG do Brasil é o 57º, apenas na frente de mais 6 nações incluídas na pesquisa e atrás de 56 países”[i].
Além disso, no RDH (Relatório de Desenvolvimento Humano) para 2005, divulgado pela ONU (Organização das Nações Unidas), o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do Brasil é 0,792 para o ano de 2003 – O IDH varia de 0 a 1 e quanto maior o número, mais elevada é a qualidade de vida no País. O Brasil ocupou a 63ª posição no ranking dos 177 países pesquisados. É de lamentar que esse RDH, apesar de apontar um IDH dois milésimos melhor do que no ano anterior, ainda denota um dos mais gritantes contrastes vividos pelos brasileiros. Segundo o relatório “só em cinco países os 10% mais pobres ficam com uma parcela de renda menor que a dos brasileiros miseráveis. [...] Por outro lado, em apenas sete países os 10% mais ricos da população se apropriam de uma fatia de renda nacional maior que a dos ricos brasileiros, que abocanham 46,9% da renda”.[ii]
Extremamente ricos e extremamente pobres. Assim vivem os brasileiros, divididos pelos abismos dos contrastes econômico-sociais, com a parte mais frágil, mesmo majoritária, dançando perigosamente na corda bamba, a mercê de seus opressores, para os quais, a solução da miséria do planeta ainda deve seguir a velha fórmula romana do “pão e circo”. Para tanto, criaram até um novo vocábulo: “tittytainment, combinação de entertainment (diversão, entretenimento) e tits (gíria americana para seios ou tetas). Ao cunhar a expressão, Brzezinski pensou menos em sexo e mais no leite da mãe que amamenta. Com uma mistura de diversão anestesiante e alimento suficiente – o “entretenimento”, numa tentativa de tradução –, a vasta legião de frustrados e excluídos poderia ser mantida satisfeita”.[iii]
Pão e circo. Esta é a solução que os ricos têm para aqueles que só têm “de seu” as mãos, os pés, a barriga vazia e cujo projeto de vida mais feliz é de um dia poder incluir-se no sonho capitalista, vivendo nos EUA, na Europa ou em qualquer país do chamado primeiro mundo, mesmo que seja trabalhando em ritmo escravo, duas , três ou ainda mais jornadas diárias de trabalho, sozinho, longe de seu país e de seus familiares, como se tivessem sido degredados.
“Tittytainment”. A cultura imperialista têm dado aos excluídos de tudo, muitos Chapolins Colorados” e outros tantos falsos heróis, para que sonhem com uma provável possibilidade de libertação. E muitos vivem nesse divertido (sic) mundo da lua, enquanto são apenas mantidos vivos pelos bolsões de pobreza do Estado dos opressores, prontos para serem arregimentados como soldados do chamado “exército de reserva”, para substituir aqueles que forem sucumbindo nas frentes de batalha em prol da construção do Estado deles, feito na medida deles e para eles tão somente. Do ideal democrático tal, “do povo, pelo povo e para o povo” fica apenas o “pelo povo”. De resto, é de destacar o sangue ardente bombeado pelos corações dessa gente oprimida, cada vez mais oprimida, principalmente porque busca a sua libertação na pedagogia do dominante, ao invés de construir a sua própria, a “pedagogia do oprimido”, como bem orientam os escritos do mestre dos excluídos, o professor Paulo Freire com sua pedagogia libertadora.
Pobres... Costa e Silva dizia que “os ricos devem continuar cada vez mais ricos para poderem proporcionar a felicidade aos pobres”[iv]. Pobres... Jesus disse: “Os pobres vocês sempre os terão consigo”[v]. Mas, da mesma sorte que “nosso céu tem mais estrelas, nossas várzeas têm mais flores, nossos bosques têm mais vida, nossa vida mais amores”[vi], nossos pobres também são mais pobres. Eles são os mais de 44,8 milhões de miseráveis que povoam o Brasil desde 2004, segundo divulgação da Fundação Getúlio Vargas (FGV)[vii].
Não bastassem essas manifestações escravagistas de ordem fática e de cunho material que dominam a paisagem brasileira, as maiorias desse país ainda sucumbem perante os paradoxos provenientes do ordenamento jurídico pátrio que deveria protegê-los. Senão, vejamos.
Aduz o texto constitucional nacional em seu art. 1º, inc. III, que a “dignidade da pessoa humana” é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, complementando em seu art. 3º, que esta tem como objetivos fundamentais: “I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
É evidente que tais dispositivos são pilares a serem seguidos durante toda a construção do edifício constitucional, inclusive no que diz respeito à sua revisão e reformas posteriores, bem como a todas as construções erguidas em torno de seu eixo central pelos legisladores ordinários típicos e atípicos. Em tudo por tudo, o povo brasileiro, sem exceção, deveria pautar a sua conduta e ações, nas regras estabelecidas pelo constituinte originário, para viger em todo o território nacional.
De que adiantaria ao Brasil ter uma Constituição se ela não fosse respeitada enquanto tal? Quem responde é juiz John Marshall, da Corte Suprema dos EUA, nos autos do caso Marbury x Madison, nos idos de 1803, logo após a promulgação da Constituição dos Estados Unidos. Disse então: “Ou a Constituição é uma lei superior, soberana, irreformável mediante processos comuns, ou se nivela com os atos da legislação usual, e, como estes, é reformável à vontade da legislatura. Se a primeira é verdadeira, então o ato legislativo contrário à constituição não será lei; se é verdadeira a segunda, então as Constituições escritas são esforços inúteis do povo para limitar um poder pela sua própria natureza ilimitável. Ora, com certeza, todos os que têm formulado Constituições escritas, sempre o fizeram no objetivo de determinar a lei fundamental e suprema da nação; e, conseqüentemente, a teoria de tais governos deve ser a da nulidade de qualquer ato da legislatura ofensivo à Constituição”[viii]. Essa mesma postura tem sido adotada no Brasil desde a Constituição Republicana de 1891. Todavia, em que pese ter um dos melhores controles de constitucionalidade do mundo, já que abrange tanto o controle concentrado do modelo europeu, como o controle difuso do modelo americano, ainda se admite na Constituição Brasileira as chamadas “normas programáticas” que estão em seu texto apenas como intenção do Estado, mas que ainda não podem ser cumpridas em sua plenitude.
É o que ocorre com a norma insculpida no art. 7º, IV, da CF/88, onde se estabelece, dentre os “direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim”.
Dir-se-á que tal norma é de eficácia plena e não programática, como ora se alega. A um tal argumento se redargüi com a anuência apenas em relação à questão do valor “mínimo”, entendendo também que este deva ser o menor salário pago ao trabalhador por uma jornada de até 44 horas semanais. Todavia, no que diz respeito às finalidades que tal salário mínimo devem atender – atualmente no valor de R$ 300,00 (trezentos reais) por mês, R$ 10,00 (dez reais) por dia ou R$ 1,36 (um real e trinta e seis centavos) por hora, conforme estabelecido na Lei nº 11.164 de 18/08/2005 –, não há conciliação. Ou a lei que fixou esse valor indigno é tipicamente inconstitucional por ferir o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), bem como o art. 7º, IV, ou então não existe trabalho escravo no Brasil e todos os brasileiros têm o que comer, o que vestir, onde morar e tudo o mais que necessita uma pessoa humana. Nesse caso, não é a realidade vivida pelos brasileiros que está pintada em preto e branco; é o filme usado pelo fotógrafo que não é colorido. E o Brasil tem realmente as cores de sua bandeira. Sabe-se, com certeza que essa não é a realidade fática.
A título de comparação, seria difícil concluir sobre o que é pior: se a política repressiva do governo americano de George Bush em relação aos imigrantes brasileiros em busca de remuneração digna nos EUA, apesar do trabalho indigno a que são submetidos, se a política opressora do Brasil com o seu salário mínimo indigno de R$ 300,00 mensais para toda espécie de trabalho digno, uma vez que ninguém consegue viver em condições de dignidade com esse salário.
Conclui-se, portanto, que o problema do trabalho escravo no Brasil perpassa pelos paradoxos existentes entre o ideal constitucional de dignidade e a realidade indigna aceita como natural pela sociedade brasileira. A superação desses contrastes culminará com a instalação de uma ordem justa e igualitária para todos no Brasil.
[i] BUSCANDO eficácia na gestão pública. Gerente de Cidade, São Paulo, ano 9, n. 35, p. 1-5, jul.-set. 2005.
[ii] Idem.
[iii] MARTIN, H. A armadilha da globalização. 3.ed. São Paulo: Globo, 1998, p. 12.
[iv] ARQUIVO N. Globo News. Documentário exibido em 02/12/2005 pelo canal 105 da TV por assinatura Sky.
[v] BÍBLIA de estudo NVI. Mateus. São Paulo: Vida, 2003, cap. 26, v. 11, p. 1661.
[vi] DIAS, G. Canção do exílio. In: GOMES, V. M. M. C. (Org.) Poetas e escritores românticos do Brasil. São Paulo: Novo Brasil, 1987, p. 58
[vii] DANTAS, F. Número de miseráveis cai 8% no país. O Estado de São Paulo, São Paulo, 29 nov. 2005. Disponível em: <http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=33409>. Acesso em 03/12/2005.
[viii] MIRANDA, H. S. Curso de direito constitucional. 2.ed. Brasília: Senado Federal, 2005, p. 129, N.R.
4 comentários:
Sua visão sociológica é legal, mas vou comentar mais depois.
não quero polemizar, mas não concordo com chamar de trabalho escravo o trabalho mal remunerado.
Sabemos que no norte havia (ainda, há, mas pco) trabalho escravo.
Mas quais são os requisitos para que um trabalho seja considerado escravo?
1 - inexistência de liberdade
2 - não-remuneração
Acho que esses requisitos não estão presentes.
Mas alerto pra uma coisa pior. Chamo de filantropia pantaneira: um fazendeiro pega uma criança (filha de pais pobres) pra criar. Em troca dá alimentação, deixa ir pro colégio, se ele fizer todos os afazeres, e lhe dá amplas funções que vão desde limpar a casa até campear o gado.
Isso me preocupa mais do que o trabalho mal remunerado, pq mexe com crianças e adolescentes que são enganadas.
Bom Beto, nao concordo com vc.
q tipo de liberdade é essa em que os "peoes" que trabalham até praticamente morrerem de esgotamento e recebem mixaria por isso possibilita para a sua familia?? mau ganha para comer!! e ao associarmos as duas coisas, logo, teremos, a inexistencia de liverdade, pois alem de tudo, o elemento nao pode sair do emprego, pq deve pros patroes, e uma remuneração baixa, que nesse caso é quase a mesma coisa que nada.
É evidente que o trabalho escravo na configuração atual difere sensivelmente do trabalho escravo do Brasil Imperial, mas não deixa de ter uma conotação escravagista o cumprimento de jornadas ilegais (mais de 44 horas semanais), os sálários abaixo do mínimo, etc. Por que o escravo continuou no engenho mesmo depois de ser "liberto"? Porque ele não tinha condições de viver a sua liberdade. Não há liberdade se não há condições de vida e há escravidão se sou obrigado a viver de uma forma que atenta contra a dignidade da pessoa humana. Mas, resoeito a linha de pensamento apresentada pelos companheiros. O que seria o debate se todos pensassem iguais? Abraços.
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