domingo, julho 12, 2015

Histórias de Poxoréu

Os diamantes do Kurugugwári
Prof. Izaias Resplandes de Sousa


Poxoréu é uma cidade garimpeira. Ela foi construída na terra dos índios Bororos Coroados, no delta formado pelos rios Bororo, Areia e Poxoréu (Pó Ceréu), bem à sombra do Morro da Mesa, que os índios chamavam de Morro Kurugugwári[1], que quer dizer Casa do Gavião de Penacho ou Caracaraí[2] . Herdou seu nome do Rio Pó Ceréu, que significava rio de águas escuras.
O Morro Kurugugwári era visto a centenas de léguas de distância, por causa de sua altura.
Essa história aconteceu há muito tempo atrás, antes que Poxoréu existisse, quando apenas os ferozes índios Bororos Coroados andavam por ali.

A terra era coberta por uma mata fechada, com árvores enormes crescendo desde a beira dos rios até o topo do Kurugugwári. Animais ferozes também viviam naquelas matas e eram caçados pelos bravos e corajosos índios. Havia até onças pintadas. As onças pardas eram bem comuns. Mas também havia antas, capivaras, caititus, pacas, cobras de muitas espécies e muitos outros bichos. Os rios fervilhavam de peixes. Era uma terra muito farturenta e boa para se viver. Mas era uma terra selvagem, onde somente os ferozes índios Bororos Coroados viviam. E as histórias contadas por alguns que se aventuraram ir até lá e que conseguiram voltar, não animavam a ninguém mais fazer as penetrações naquela região, pois a maioria dos que iam, jamais voltava.

Eu conheci um velho índio chamado Rikaimbaúba e que nascera naquela região. Ficamos amigos e então ele me contou essa história.
Ele me disse que, em certo dia, de noite muito escura, os bororos David Inapacanim e Izazá Urutaurana montaram uma espera no alto do Kuruguguwári para caçar um animal. Eles tinham grandes habilidades para caçar, sendo muito admirados pelos garotos da aldeia bororo de Pó Ceréu, a qual ficava no lado poente do morro que a balizava.

Durante muito tempo eles descansaram no alto da espera, feita na copa de um Pateiro centenário, enquanto aguardavam a saída da lua. Era nessas horas de luar que os animais saíam de suas tocas para procurar comida. Eram então que muitos deles também acabam se tornando comida de outros bichos mais ladinos e espertos.
Foi então que tudo aconteceu. A noite escura virou dia. Uma enorme bola de fogo, com muitas estrelinhas brilhando ao seu redor tomou conta do céu, iluminando tudo como seu fosse o meio dia. A bola ia de um lado para outro, parando em um ponto aqui, outro ali do céu, como que sondando o imenso vale dos rios Areia, Bororo e Pó Ceréu. Ela também girava em torno de si. E girava, girava, emitindo um zumbido de milhões de abelhas. Até que veio e parou sobre o topo do Kurugugwári, descendo ali, queimando o mato em volta, o qual virou cinza apenas pelo contato com aquela bola de fogo. Inapacanim e Urutaurana perderam a fala naquele momento. Ficaram encantados com aquilo. Parecia que o sol e muitas estrelas haviam caído do céu ali no topo daquele morro. Eles imaginaram que, com certeza, Deus chegava à terra dos índios para fazer o juízo. E assim pensavam, até que foram despertos de seu êxtase por uma terrível vibração da terra. Parecia que o morro estava se desmanchando.


O barulho durou muito tempo. A lua apareceu, mas quase não se via o seu brilho. Ela já estava no meio do céu, no alto de suas cabeças quando a bola de fogo voltou a girar e girar, levantando-se outra vez e fazendo novamente um imenso voo rasante pela região, parando aqui ou ali, até precipitar-se em alta velocidade pela imensidão do céu de onde ela viera, indo em direção à lua. Inapacanim e Urutaurana ficaram observando a subida dela até que sumiu de suas vistas.
Naquela noite, nenhum animal apareceu debaixo do velho Pateiro. Mesmo assim, eles não conseguiram dormir. Somente no outro dia, quando o sol clareou o topo do morro, foi que eles desceram da árvore e foram até a clareira feita pela bola de fogo.
A área devastada era circular e cobria quase a metade do morro. O chão estava coberto de cinzas ainda mornas, apesar da friagem da noite. E lá no meio daquele círculo via-se uma grande cratera. Teria sido ali o lugar que a bola de fogo descera. Os índios se aproximaram do lugar. Era um buraco em formato de árvore. Na boca era bem largo, como se fosse a copa da árvore. Depois se afunilava, como se fosse o tronco de uma árvore grossa, que poderia ser abraçada se umas seis pessoas dessem suas mãos. O buraco-tronco sumia morro adentro. Eles olharam para baixo, mas não conseguiram ver o fundo lá de cima.

Os dois caçadores ainda estavam na admiração daquela nova paisagem quando começaram a chegar os outros índios da aldeia, que também viram a bola de fogo e estavam curiosos para saber o que tinha acontecido. Depois de analisarem a situação, decidiram descer no buraco e ver até onde ele ia.
Os índios fizeram uma grande e grossa corda com embira de buriti. Formaram vários rolos de corda. Amarraram-na nas árvores mais grossas do morro e jogaram as pontas dos rolos pelo buraco. Então começaram a descida. O pequeno valente Inapacanim, segurando uma tocha acesa e seu amigo Urutaurana puxaram a fila, iluminando a descida. Desceram a altura de uns dez pés de buriti buraco adentro. E então chegaram no fundo. Ali o buraco se alargava novamente, como se fossem as raízes se espalhando em várias direções, formando uma grande caverna. E por todo lado que se olhava, o que se viam eram lindas pedras que refletiam à luz das tochas.
Em um dos lados daquela caverna brotava um forte olho d’água, jogando-se para cima quase até a altura de Urutaurana. A água dessa mina estava enchendo a caverna.
Eles ficaram encantados com o brilho daquelas pedras que estavam sendo cobertas pelas águas. Mas viram que não poderiam demorar muito ali e se preparam para voltar. Cada um pegou o tanto de pedras que pode e subiram novamente por onde haviam vindo.
No topo do morro mostram aquelas lindas pedras aos seus companheiros, que não tinham descido, dando-lhes algumas de presente. Depois voltaram à aldeia.
Durante muito tempo, o que se falava ali era sobre a bola de fogo e as lindas pedras encontradas dentro do Kurugugwári, as quais agora enfeitam os pescoços de todos os índios da aldeia.
Somente muitos anos depois, com a chegada dos homens brancos à região é que se descobriu que aquelas pedras eram chamadas de diamantes e que tinham grande valor. Por conta disso, muita gente morreu naquela região, pois todos queriam ser os donos dos diamantes do Kurugugwári, como passaram a ser chamados. Muitos índios foram torturados até a morte para dizerem onde haviam encontrado aquelas pedras, mas nenhum deles rompeu o pacto de silêncio.

Mas os diamantes não foram os únicos presentes. Aquela nascente que foi existia embaixo do morro e que foi liberada com aquele túnel, logo, logo o encheu, atingindo o topo do morro, formando uma linda piscina natural na cratera onde a Bola de Fogo descera, escoando dali na superfície do morro por uns trezentos metros através de uma depressão natural, chegando até a borda do abismo, de onde se lançou em linda cachoeira até a base do Kurugugwári, formando um pequeno regato que deságua na margem direita do Rio Bororo. A cachoeira tinha uns duzentos metros de altura. Era um espetáculo muito lindo de se ver.

Mas na medida que o tempo foi passando a pressão exercida por aquela piscina de mais de cem metros de profundidade, nas paredes do morro foi provocando rachaduras, por onde a água foi passando, penetrando nas suas entranhas até atingir a sua parte externa, de modo que surgiram pequenas nascentes de água em vários pontos, formando pequenas grotas d’água que corriam para o rio Bororo e para o rio Pó Ceréu. Algumas maiores e outras menores. Com o tempo, essas nascentes foram se alargando, aumentando o fluxo de suas águas, de modo que acabaram carregando muitos dos diamantes do Kurugugwári para os leitos dos rios, alguns dos quais, mais tarde foram descobertos pelos primeiros garimpeiros que ali chegaram.
E o fluxo de água para a superfície do morro foi diminuindo, diminuindo, até que secou de vez. E então ficou aquela fenda enorme no centro do morro, que representava um grande perigo para as pessoas que subiam até lá. E assim os índios decidiram soterrá-la. Eles passaram muitas luas carregando pedras e terra lá para cima do morro até que encheram completamente aquele grande buraco. Também replantaram toda a área devastada e após alguns anos não ficou o menor sinal dela. O chão voltou a ser recoberto de vegetação rasteira, embora as árvores já não cresciam tanto quanto antes, talvez porque as fontes de água agora estavam muito profundas e pendendo para outra direção. Mesmo assim, nunca mais alguém tentou reabrir a cratera. E o tempo foi passando e tudo aquele acontecimento foi se tornando apenas uma lenda que era contada para entreter as crianças.
A partir da descoberta dos diamantes pelos garimpeiros brancos que chegaram ao Kurugugwáre, houve uma grande corrida em busca dessa grande riqueza. Veio gente de todo lado em busca dos diamantes milionários que se espalhavam pelos lendários garimpos pra mais de mil que povoaram o Vale do Pó Ceréu, balizados pelo majestoso Morro Kurugugwári, ao qual rebatizaram de Moro da Mesa, porque tinha o formato de uma mesa. Formou-se ali uma povoação, também chamada de Morro da Mesa, nome mais tarde mudado para Poxoréu.
Quando os garimpeiros chegaram, os índios bororos logo se espalharam para outras terras, não se acomodando na convivência com eles, os quais reviravam sua terra como besouros em busca dos ricos diamantes presenteados pelo Deus da Bola de Fogo, do Sol e das Estrelas, que um dia descera do céu sobre o velho Kurugugwári.
Com o tempo se descobriu que não apenas nas águas dos rios Bororo e Poxoréu havia diamantes, mas em toda aquela região que fora sobrevoada pela grande Bola de Fogo. Por todo lado onde ela passara e não apenas na região de Poxoréu, a bola fora cristalizando as pedras e formando os tão cobiçados diamantes.
Pelo que se sabe, até os dias atuais ainda tem muita gente procurando diamantes nas terras abençoadas pelo Kurugugwári. 

E foi assim que nasceu Poxoréu.




[1] Sousa, Izaias Resplandes de. Viva o Brasil. Somatório de Ideias.  http://respland.blogspot.com.br/2006/04/viva-o-brasil.html
[2] Gavião Penacho. Crédito: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/54/Spizaetus_ornatus_crop.png. O gavião-de-penacho (Spizaetus ornatus) é um gavião florestal, da família dos acipitrídeos. É considerado pelo IBAMA como ameaçado de extinção no Brasil, mas não é tido como espécie globalmente ameaçada pela IUCN. Também é conhecido pelos nomes de apacanim, inapacanim e urutaurana.

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