Os diamantes do Kurugugwári
Prof. Izaias
Resplandes de Sousa
Poxoréu é uma cidade garimpeira. Ela foi
construída na terra dos índios Bororos Coroados, no delta formado pelos rios
Bororo, Areia e Poxoréu (Pó Ceréu), bem à sombra do Morro da Mesa, que os índios
chamavam de Morro Kurugugwári[1],
que quer dizer Casa do Gavião de Penacho ou Caracaraí[2]
. Herdou seu nome do Rio Pó Ceréu, que significava rio de águas escuras.
O Morro Kurugugwári era visto a centenas de
léguas de distância, por causa de sua altura.
Essa história aconteceu há muito tempo atrás,
antes que Poxoréu existisse, quando apenas os ferozes índios Bororos Coroados andavam
por ali.
A terra era coberta por uma mata fechada, com
árvores enormes crescendo desde a beira dos rios até o topo do Kurugugwári.
Animais ferozes também viviam naquelas matas e eram caçados pelos bravos e
corajosos índios. Havia até onças pintadas. As onças pardas eram bem comuns.
Mas também havia antas, capivaras, caititus, pacas, cobras de muitas espécies e
muitos outros bichos. Os rios fervilhavam de peixes. Era uma terra muito
farturenta e boa para se viver. Mas era uma terra selvagem, onde somente os
ferozes índios Bororos Coroados viviam. E as histórias contadas por alguns que
se aventuraram ir até lá e que conseguiram voltar, não animavam a ninguém mais
fazer as penetrações naquela região, pois a maioria dos que iam, jamais
voltava.
Eu conheci um velho índio chamado Rikaimbaúba
e que nascera naquela região. Ficamos amigos e então ele me contou essa
história.
Ele me disse que, em certo dia, de noite
muito escura, os bororos David Inapacanim e Izazá Urutaurana montaram uma
espera no alto do Kuruguguwári para caçar um animal. Eles tinham grandes
habilidades para caçar, sendo muito admirados pelos garotos da aldeia bororo de
Pó Ceréu, a qual ficava no lado poente do morro que a balizava.
Durante muito tempo eles descansaram no alto
da espera, feita na copa de um Pateiro centenário, enquanto aguardavam a saída
da lua. Era nessas horas de luar que os animais saíam de suas tocas para
procurar comida. Eram então que muitos deles também acabam se tornando comida
de outros bichos mais ladinos e espertos.
Foi então que tudo aconteceu. A noite escura
virou dia. Uma enorme bola de fogo, com muitas estrelinhas brilhando ao seu
redor tomou conta do céu, iluminando tudo como seu fosse o meio dia. A bola ia
de um lado para outro, parando em um ponto aqui, outro ali do céu, como que
sondando o imenso vale dos rios Areia, Bororo e Pó Ceréu. Ela também girava em
torno de si. E girava, girava, emitindo um zumbido de milhões de abelhas. Até
que veio e parou sobre o topo do Kurugugwári, descendo ali, queimando o mato em
volta, o qual virou cinza apenas pelo contato com aquela bola de fogo. Inapacanim
e Urutaurana perderam a fala naquele momento. Ficaram encantados com aquilo.
Parecia que o sol e muitas estrelas haviam caído do céu ali no topo daquele
morro. Eles imaginaram que, com certeza, Deus chegava à terra dos índios para
fazer o juízo. E assim pensavam, até que foram despertos de seu êxtase por uma
terrível vibração da terra. Parecia que o morro estava se desmanchando.
O barulho durou muito tempo. A lua apareceu,
mas quase não se via o seu brilho. Ela já estava no meio do céu, no alto de suas
cabeças quando a bola de fogo voltou a girar e girar, levantando-se outra vez e
fazendo novamente um imenso voo rasante pela região, parando aqui ou ali, até
precipitar-se em alta velocidade pela imensidão do céu de onde ela viera, indo
em direção à lua. Inapacanim e Urutaurana ficaram observando a subida dela até
que sumiu de suas vistas.
Naquela noite, nenhum animal apareceu debaixo
do velho Pateiro. Mesmo assim, eles não conseguiram dormir. Somente no outro
dia, quando o sol clareou o topo do morro, foi que eles desceram da árvore e
foram até a clareira feita pela bola de fogo.
A área devastada era circular e cobria quase
a metade do morro. O chão estava coberto de cinzas ainda mornas, apesar da
friagem da noite. E lá no meio daquele círculo via-se uma grande cratera. Teria
sido ali o lugar que a bola de fogo descera. Os índios se aproximaram do lugar.
Era um buraco em formato de árvore. Na boca era bem largo, como se fosse a copa
da árvore. Depois se afunilava, como se fosse o tronco de uma árvore grossa,
que poderia ser abraçada se umas seis pessoas dessem suas mãos. O buraco-tronco
sumia morro adentro. Eles olharam para baixo, mas não conseguiram ver o fundo
lá de cima.
Os dois caçadores ainda estavam na admiração daquela
nova paisagem quando começaram a chegar os outros índios da aldeia, que também
viram a bola de fogo e estavam curiosos para saber o que tinha acontecido.
Depois de analisarem a situação, decidiram descer no buraco e ver até onde ele
ia.
Os índios fizeram uma grande e grossa corda com
embira de buriti. Formaram vários rolos de corda. Amarraram-na nas árvores mais
grossas do morro e jogaram as pontas dos rolos pelo buraco. Então começaram a
descida. O pequeno valente Inapacanim, segurando uma tocha acesa e seu amigo
Urutaurana puxaram a fila, iluminando a descida. Desceram a altura de uns dez
pés de buriti buraco adentro. E então chegaram no fundo. Ali o buraco se
alargava novamente, como se fossem as raízes se espalhando em várias direções,
formando uma grande caverna. E por todo lado que se olhava, o que se viam eram
lindas pedras que refletiam à luz das tochas.
Em um dos lados daquela caverna brotava um
forte olho d’água, jogando-se para cima quase até a altura de Urutaurana. A
água dessa mina estava enchendo a caverna.
Eles ficaram encantados com o brilho daquelas
pedras que estavam sendo cobertas pelas águas. Mas viram que não poderiam
demorar muito ali e se preparam para voltar. Cada um pegou o tanto de pedras
que pode e subiram novamente por onde haviam vindo.
No topo do morro mostram aquelas lindas
pedras aos seus companheiros, que não tinham descido, dando-lhes algumas de
presente. Depois voltaram à aldeia.
Durante muito tempo, o que se falava ali era
sobre a bola de fogo e as lindas pedras encontradas dentro do Kurugugwári, as quais
agora enfeitam os pescoços de todos os índios da aldeia.
Somente muitos anos depois, com a chegada dos
homens brancos à região é que se descobriu que aquelas pedras eram chamadas de
diamantes e que tinham grande valor. Por conta disso, muita gente morreu
naquela região, pois todos queriam ser os donos dos diamantes do Kurugugwári,
como passaram a ser chamados. Muitos índios foram torturados até a morte para
dizerem onde haviam encontrado aquelas pedras, mas nenhum deles rompeu o pacto
de silêncio.
Mas os diamantes não foram os únicos
presentes. Aquela nascente que foi existia embaixo do morro e que foi liberada
com aquele túnel, logo, logo o encheu, atingindo o topo do morro, formando uma
linda piscina natural na cratera onde a Bola de Fogo descera, escoando dali na
superfície do morro por uns trezentos metros através de uma depressão natural,
chegando até a borda do abismo, de onde se lançou em linda cachoeira até a base
do Kurugugwári, formando um pequeno regato que deságua na margem direita do Rio
Bororo. A cachoeira tinha uns duzentos metros de altura. Era um espetáculo
muito lindo de se ver.
Mas na medida que o tempo foi passando a
pressão exercida por aquela piscina de mais de cem metros de profundidade, nas
paredes do morro foi provocando rachaduras, por onde a água foi passando,
penetrando nas suas entranhas até atingir a sua parte externa, de modo que
surgiram pequenas nascentes de água em vários pontos, formando pequenas grotas
d’água que corriam para o rio Bororo e para o rio Pó Ceréu. Algumas maiores e
outras menores. Com o tempo, essas nascentes foram se alargando, aumentando o
fluxo de suas águas, de modo que acabaram carregando muitos dos diamantes do
Kurugugwári para os leitos dos rios, alguns dos quais, mais tarde foram
descobertos pelos primeiros garimpeiros que ali chegaram.
E o fluxo de água para a superfície do morro
foi diminuindo, diminuindo, até que secou de vez. E então ficou aquela fenda
enorme no centro do morro, que representava um grande perigo para as pessoas
que subiam até lá. E assim os índios decidiram soterrá-la. Eles passaram muitas
luas carregando pedras e terra lá para cima do morro até que encheram
completamente aquele grande buraco. Também replantaram toda a área devastada e
após alguns anos não ficou o menor sinal dela. O chão voltou a ser recoberto de
vegetação rasteira, embora as árvores já não cresciam tanto quanto antes,
talvez porque as fontes de água agora estavam muito profundas e pendendo para
outra direção. Mesmo assim, nunca mais alguém tentou reabrir a cratera. E o
tempo foi passando e tudo aquele acontecimento foi se tornando apenas uma lenda
que era contada para entreter as crianças.
A partir da descoberta dos diamantes pelos
garimpeiros brancos que chegaram ao Kurugugwáre, houve uma grande corrida em
busca dessa grande riqueza. Veio gente de todo lado em busca dos diamantes
milionários que se espalhavam pelos lendários garimpos pra mais de mil que
povoaram o Vale do Pó Ceréu, balizados pelo majestoso Morro Kurugugwári, ao
qual rebatizaram de Moro da Mesa, porque tinha o formato de uma mesa. Formou-se
ali uma povoação, também chamada de Morro da Mesa, nome mais tarde mudado para
Poxoréu.
Quando os garimpeiros chegaram, os índios
bororos logo se espalharam para outras terras, não se acomodando na convivência
com eles, os quais reviravam sua terra como besouros em busca dos ricos
diamantes presenteados pelo Deus da Bola de Fogo, do Sol e das Estrelas, que um
dia descera do céu sobre o velho Kurugugwári.
Com o tempo se descobriu que não apenas nas
águas dos rios Bororo e Poxoréu havia diamantes, mas em toda aquela região que
fora sobrevoada pela grande Bola de Fogo. Por todo lado onde ela passara e não apenas
na região de Poxoréu, a bola fora cristalizando as pedras e formando os tão
cobiçados diamantes.
Pelo que se sabe, até os dias atuais ainda
tem muita gente procurando diamantes nas terras abençoadas pelo Kurugugwári.
E
foi assim que nasceu Poxoréu.
[1]
Sousa, Izaias Resplandes de. Viva o Brasil. Somatório de Ideias. http://respland.blogspot.com.br/2006/04/viva-o-brasil.html
[2]
Gavião Penacho. Crédito: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/54/Spizaetus_ornatus_crop.png.
O gavião-de-penacho (Spizaetus ornatus) é
um gavião florestal, da família dos acipitrídeos. É considerado
pelo IBAMA como ameaçado de extinção no Brasil, mas não é tido como
espécie globalmente ameaçada pela IUCN. Também é conhecido pelos nomes de
apacanim, inapacanim e urutaurana.
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